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quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Rotinas Urbanas

Reza a lenda que todas as manhãs, logo que amanhecia, se levantava preguiçosamente, punha o café a passar, e saía para seu único passeio diário pelas ruas ainda desertas. O sol iluminava somente parte dos prédios, e a brisa da manhã ainda era fresca. Seu passeio era curto, apenas por algumas ruas vizinhas, às vezes até o rio, onde parava por alguns instantes. Depois, voltava para casa e finalmente tomava o café, aos goles curtos que o faziam perdurar, gelado, até quase ao meio-dia.

Nesse meio tempo, gostava de ler. Abria um de seus muitos livros com uma mão, segurando a xícara com a outra, e gastava a manhã inteira para ler nunca mais que cinco páginas, entre goladas e caminhadas pensativas pela casa. Quando se esgotava o tempo, fechava o livro e o guardava. Na manhã seguinte, seria outro. Nunca os lia completamente, embora freqüentemente os repetisse, reiniciando, porém, de novo da primeira página.

A hora do almoço era solitária. Não que as outras não fossem, mas era quando mais as percebia assim. A refeição era simples: porções de arroz e feição requentadas, alguma carne, de vez em quando massa sem molho. Gostava de cozinhar algumas coisas, e até achava que cozinhava bem, mas tinha preguiça de o fazer somente para si. Cozinhava pouco para ter pouca louça para lavar. Comia segurando o prato sob o queixo, às vezes escutando algum programa esportivo, ou de humor, no rádio.

Enquanto isso, o sol subia até o ponto mais alto do céu. As tardes eram os piores momentos dos dias, ansiosas e calorentas. Sua mente fervia. Pensava em mudar radicalmente sua vida, tomar alguma atitude, fazer alguma coisa, mas aquele sol batendo sobre os móveis e o ritmo maluco que observava pela janela sugavam suas iniciativas. Algumas coisas eram tão rotineiras quanto essas sensações: por exemplo, havia sempre alguma reforma, algum martelar, algum barulho de furadeira, na casa de algum vizinho. Todas as tardes, a tarde inteira, agonizantemente. Não conseguia tranqüilizar-se para continuar a leitura iniciada na manhã, e, então, ficava revezando entre o rádio e a TV, não prestando atenção nem num, nem noutro, também aos goles, mas, nessa vez, de um guaraná já sem gás há semanas.

Até que a noite finalmente chegava, aos poucos, e era quando percebia que o dia havia passado. Olhava a geladeira para ver se havia alguma coisa para comer na janta, torcendo para que não houvesse, para que precisasse ir até o mercado comprar pão, queijo e presunto, mas geralmente havia. Torcia, então, para que algum amigo lhe telefonasse o convidando para uma cerveja, embora soubesse que não deveria fazer isso numa terça-feira, ou quarta, ou quinta, embora também soubesse que, sinceramente, isso não lhe fazia a menor diferença. Mas nada disso acontecia, e então jantava algum sanduíche, novamente com um prato sob o queixo, e novamente ao som do rádio, nessa vez escutando a um programa de canções melosas que lhe faziam lembrar os pequenos namoricos do tempo de colégio, compartilhadas com outros ouvintes que ligavam para a rádio as pedindo. Somente depois, já de madrugada, ia banhar-se e preparar-se para dormir.

Apagava as luzes consternado, cansado, mas ainda sem sono, torcendo, agora, para que o dia não amanhecesse chovendo. Quando amanhecia chovendo, tinha que esperar o café passar em casa, olhando para a cafeteira.

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