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sábado, 2 de maio de 2009

O amor pela madrugada

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Cultivo uma relação amorosa com a madrugada desde os meus mais remotos tempos. Tenho nela uma afinidade difícil de definir. Lembro-me de ter sete ou oito anos e já adentrá-la até altas horas. Obviamente sob sigilo em relação aos pais, mas eu dava um jeito. Não tinha preço aquela sensação de transgredir o estabelecido e sentir as delícias daquela solidão. Muitas vezes, ainda, meu desejo era chegar até ao amanhecer, mas dificilmente conseguia. Naqueles tempos eu não tinha a habilidade que tenho hoje.

Atualmente, mais do que uma companheira, ela se tornou uma esposa fiel. Devasto noites adentro, seja numa mesa de bar ou simplesmente ouvindo o silêncio tão cheio de vida das horas já passadas. Incrível sensação de pacifismo e liberdade. O que há de maléfico no mundo, naquele momento, está silenciado. Parece que ninguém mais poderá erguer a voz para contrariar alguma coisa. Tudo passa a ser afirmativo. Tudo passa a ser permitido para a aguçada imaginação. Conto os minutos para que não recomece os afazeres do dia-a-dia pela manhã, momento tão bem descrito por Carlos Drummond, quando então ressurge a Máquina do Mundo: "Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra / e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer. / Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina / e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras". E continua em outra passagem: "esse amanhecer / mais noite que a noite".

A madrugada guarda uma cumplicidade peculiar. É o momento em que as pessoas que amamos estão a salvo. Enquanto dormem, estão isoladas de qualquer força destrutiva. Estão lá, mergulhadas em seus sonhos, sejam eles bons ou ruins, mas sobretudo sonhados em segurança. Existe o descansar, a fadiga sendo recomposta no justo equilíbrio do corpo. Existe o sono, refém de si mesmo, independente da forma do colchão. Todos são iguais nesse momento, que tanto se assemelha à morte quando se trata da distribuição monetária dos seres. E, diante disso tudo, estão meus olhos atentos, contemplativos, embevecidos de curiosidade e ardência.

Madrugada, que é minha e eu sou dela. Formamos uma dupla tão leal um ao outro, que muitas vezes já fui penalizado pelo dia. Ao ponto de perder a lotação, perder o horário do almoço, não conseguir me concentrar nos afazeres utilitaristas... Mas isso é típico da natureza desse relacionamento, já que todo amor exige alguma abnegação, uma forma de demonstrar o comprometimento prometido. Tenho certeza que a madrugada já foi também penalizada por algo, que ainda não percebi exatamente o que é.

Faço dela meu aconchego. Debruço-me sobre a mesa. Nada me atinge nas horas calmas do seu embalo. Madrugada, que tanto sigo: na verdade só ela sabe realmente quem sou.

(Discípulo)

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