
Cultivo uma relação amorosa com a madrugada desde os meus mais remotos tempos. Tenho nela uma afinidade difícil de definir. Lembro-me de ter sete ou oito anos e já adentrá-la até altas horas. Obviamente sob sigilo em relação aos pais, mas eu dava um jeito. Não tinha preço aquela sensação de transgredir o estabelecido e sentir as delícias daquela solidão. Muitas vezes, ainda, meu desejo era chegar até ao amanhecer, mas dificilmente conseguia. Naqueles tempos eu não tinha a habilidade que tenho hoje.
Atualmente, mais do que uma companheira, ela se tornou uma esposa fiel. Devasto noites adentro, seja numa mesa de bar ou simplesmente ouvindo o silêncio tão cheio de vida das horas já passadas. Incrível sensação de pacifismo e liberdade. O que há de maléfico no mundo, naquele momento, está silenciado. Parece que ninguém mais poderá erguer a voz para contrariar alguma coisa. Tudo passa a ser afirmativo. Tudo passa a ser permitido para a aguçada imaginação. Conto os minutos para que não recomece os afazeres do dia-a-dia pela manhã, momento tão bem descrito por Carlos Drummond, quando então ressurge a Máquina do Mundo: "Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra / e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer. / Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina / e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras". E continua em outra passagem: "esse amanhecer / mais noite que a noite".
A madrugada guarda uma cumplicidade peculiar. É o momento em que as pessoas que amamos estão a salvo. Enquanto dormem, estão isoladas de qualquer força destrutiva. Estão lá, mergulhadas em seus sonhos, sejam eles bons ou ruins, mas sobretudo sonhados em segurança. Existe o descansar, a fadiga sendo recomposta no justo equilíbrio do corpo. Existe o sono, refém de si mesmo, independente da forma do colchão. Todos são iguais nesse momento, que tanto se assemelha à morte quando se trata da distribuição monetária dos seres. E, diante disso tudo, estão meus olhos atentos, contemplativos, embevecidos de curiosidade e ardência.
Madrugada, que é minha e eu sou dela. Formamos uma dupla tão leal um ao outro, que muitas vezes já fui penalizado pelo dia. Ao ponto de perder a lotação, perder o horário do almoço, não conseguir me concentrar nos afazeres utilitaristas... Mas isso é típico da natureza desse relacionamento, já que todo amor exige alguma abnegação, uma forma de demonstrar o comprometimento prometido. Tenho certeza que a madrugada já foi também penalizada por algo, que ainda não percebi exatamente o que é.
Faço dela meu aconchego. Debruço-me sobre a mesa. Nada me atinge nas horas calmas do seu embalo. Madrugada, que tanto sigo: na verdade só ela sabe realmente quem sou.
(Discípulo)
Atualmente, mais do que uma companheira, ela se tornou uma esposa fiel. Devasto noites adentro, seja numa mesa de bar ou simplesmente ouvindo o silêncio tão cheio de vida das horas já passadas. Incrível sensação de pacifismo e liberdade. O que há de maléfico no mundo, naquele momento, está silenciado. Parece que ninguém mais poderá erguer a voz para contrariar alguma coisa. Tudo passa a ser afirmativo. Tudo passa a ser permitido para a aguçada imaginação. Conto os minutos para que não recomece os afazeres do dia-a-dia pela manhã, momento tão bem descrito por Carlos Drummond, quando então ressurge a Máquina do Mundo: "Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra / e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer. / Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina / e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras". E continua em outra passagem: "esse amanhecer / mais noite que a noite".
A madrugada guarda uma cumplicidade peculiar. É o momento em que as pessoas que amamos estão a salvo. Enquanto dormem, estão isoladas de qualquer força destrutiva. Estão lá, mergulhadas em seus sonhos, sejam eles bons ou ruins, mas sobretudo sonhados em segurança. Existe o descansar, a fadiga sendo recomposta no justo equilíbrio do corpo. Existe o sono, refém de si mesmo, independente da forma do colchão. Todos são iguais nesse momento, que tanto se assemelha à morte quando se trata da distribuição monetária dos seres. E, diante disso tudo, estão meus olhos atentos, contemplativos, embevecidos de curiosidade e ardência.
Madrugada, que é minha e eu sou dela. Formamos uma dupla tão leal um ao outro, que muitas vezes já fui penalizado pelo dia. Ao ponto de perder a lotação, perder o horário do almoço, não conseguir me concentrar nos afazeres utilitaristas... Mas isso é típico da natureza desse relacionamento, já que todo amor exige alguma abnegação, uma forma de demonstrar o comprometimento prometido. Tenho certeza que a madrugada já foi também penalizada por algo, que ainda não percebi exatamente o que é.
Faço dela meu aconchego. Debruço-me sobre a mesa. Nada me atinge nas horas calmas do seu embalo. Madrugada, que tanto sigo: na verdade só ela sabe realmente quem sou.
(Discípulo)
Nenhum comentário:
Postar um comentário